Que o cinema atual é um pântano de reboots, super-heróis e dramas de Instagram, todo mundo já sacou.
Mas eis que surge um sueco-polaco chamado Magnus von Horn — nome que parece saído de um conto de Kafka — e joga um balde de querosene na sua descrença.
“A Garora da Agulha” é um soco no estômago do cinema fast-food, uma obra que resgata a arte de contar histórias com as vísceras. Está na MUBI e concorrente forte ao Oscar de filme estrangeiro.
Von Horn, 32 anos, formado na lendária Escola de Lodz (a mesma de Polanski e Kieslowski), já tinha dois filmes na bagagem — “Sweat” e “The Here After” —, mas aqui ele acerta o golpe de misericórdia.
A história? Copenhagen, 1919. Karoline (Vic Carmen Sonne), operária de uma fábrica têxtil, espera o marido, Peter, voltar das trincheiras da I Grande Guerra. Despejada, ela aluga um sótão lúgubre e inicia um improvável affair com o patrão rico, Jorgen.
Inspirado em fatos reais, o filme começa como um neorrealismo de facão amolado e, sem aviso, vira um pesadelo gótico que Bergman e Dreyer assinariam com sangue.
Não vou estragar os detalhes — a graça está nas facadas sutis do roteiro —, mas von Horn faz um troço que poucos ousam: brincar com a história do cinema.
Há uma cena que reconstitui “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière” (1895), e a trilha sonora — pasme — usa uma única música de arquivo: “Sublime Provação”, valsa brasileira de 1929 cantada por Alda Verona. Uma raridade.
Com uma fotografia toda em preto e branco que parece fumaça e carvão e uma montagem em cortes secos que te arrastam de um drama íntimo para um suspense claustrofóbico sem aviso, a atriz protagonista Vic Carmen Sonne devora a tela com grande intensidade.
Mas o pulo do gato está na direção. Von Horn faz o que Hitchcock chamava de “pure cinema”: cada quadro é um microcosmo de tensão.
Na cena em que Karoline visita a família aristocrática de Jorgen, os diálogos são banais — “Como vai o tempo?”, “Chá, querida?” —, mas a câmera, os olhares, o silêncio grudentos criam uma pressão tão absurda que você segura a respiração como se estivesse numa sala com vazamento de gás
Há expressionismo de Murnau, o realismo sujo de De Sica, até um toque de Almodóvar na tragicômica crueza das relações. Mas von Horn não copia — reinterpreta. E faz isso com uma precisão cirúrgica.
PS: Se você assistir a “A Garota da Agulha” e não sentir um frio na espinha, recomendo checar se ainda tem alma.
Ou então volte aos Marvels. Pelo menos lá o herói sempre salva o dia. Coisa que no mundo real nem sempre acontece.