A tarde avançava no Supremo Tribunal Federal quando o ministro Flávio Dino trouxe um sopro literário ao tenso julgamento na Primeira Turma.
Ao se debruçar sobre a denúncia contra Jair Bolsonaro e outros sete investigados pela Procuradoria-Geral da República, Dino evocou Albert Camus e sua obra "O Estrangeiro".
"Aqui julgamos fatos, não sentimentos", sentenciou, comparando a narrativa do escritor francês à realidade da corte.
No romance, o protagonista é condenado mais por não ter chorado no enterro da mãe do que por qualquer crime cometido. No STF, assegurou Dino, o critério é outro: "ninguém será julgado por seus sentimentos, mas pelos seus atos".
Outra: a sessão caminhava quando advogados de defesa alegaram cerceamento, reclamando do acesso restrito às provas.
Flávio Dino, com sua já conhecida oratória afiada, usou a própria queixa dos defensores para esclarecer o rito judicial: "Foram apresentados os melhores momentos", disse, em referência aos trechos das provas escolhidos para fundamentar a denúncia. E com a serenidade de quem conduz uma narrativa bem estruturada, acrescentou: "Outros momentos virão. Esse filme ainda se desenrolará em sua plenitude, com os grandes atores que são os advogados de defesa".
A peça em julgamento: Bolsonaro e seus aliados são acusados de compor o núcleo central de uma trama golpista. Ao lado do ex-presidente estão Alexandre Ramagem, ex-chefe da Abin; Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Augusto Heleno, ex-chefe do GSI; Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; e Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa.
Os crimes apontados na denúncia vão da tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito ao golpe de Estado, passando por dano qualificado e participação em organização criminosa. Caso sejam condenados, podem enfrentar penas de até 43 anos de prisão.
A aceitação da denúncia não encerra o enredo, mas dá início a um novo ato.
Se a Primeira Turma acolher as acusações, os investigados se tornarão réus e a ação penal seguirá para a fase probatória, quando poderão apresentar testemunhas e tentar desmontar a narrativa da acusação.
O desfecho desse julgamento, segundo as previsões, só deve ocorrer no segundo semestre, momento em que a sentença poderá selar um dos capítulos mais emblemáticos da história política recente do Brasil.