Por Juliano Maranhão, Profesor da Faculdade de Direito da USP e colunista da Folha de SP
"O tirano @alexandre é o ditador do Brasil", "um criminoso da pior espécie". Acredite-se ou não, o empresário Elon Musk se referiu nesses termos ao ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) após a determinação de bloqueio da rede X no país.
A ofensa foi o gatilho para uma avalanche de insultos dispersos nas redes sociais —de um lado, contra uma decisão "ultrajante"; de outro, contra o atrevimento do estrangeiro "arrogante". O embate, que tem como pano de fundo a moderação do discurso abusivo e da desinformação, chama a atenção pela forma como se manifestou e desperta a reflexão sobre o sentido de escândalo hoje. Uma alegoria pode ajudar a pensar.
Quando um advogado desembarcou em uma cidadela russa para defender Dimitri Karamázov na tragédia familiar que já havia se tornado um escândalo de proporção nacional, não deu ouvidos ao comentário das ruas e seguiu determinado em derrubar a construção do perfil parricida, que ganhava corpo na imprensa.
Apesar do brilhantismo de sua defesa, o desfecho do julgamento de Dimitri é anunciado por Dostoiévski no título do livro 12 de "Os Irmãos Karamázov": "Um erro judiciário". Mostrar a fragilidade das provas ou a suspeição das testemunhas não é suficiente e, no auge de sua eloquência, o advogado chega a pedir misericórdia, questionando o próprio amor paterno. Preocupado em reduzir a carga moral que pairava sobre os jurados, clama: "Não devemos tomar certas ideias à maneira das vendeiras de Moscou, que cuidam que há palavras perigosas".
Impotente perante o sentimento de asco associado à palavra parricídio, o advogado assiste ao desvario que se encena perante o júri, formado de mujiques e servidores provincianos. Homens ressentidos torcem por vingança, mulheres esperam absolvição em meio a certa atração pelo boêmio Dimitri. Ivan, o irmão intelectual de Dmitri, sofre um colapso mental e, apesar de saber a identidade do verdadeiro assassino, alucina e se autoacusa, percebendo que a razão havia sucumbido à questão moral que percorre todo o livro.
Esse verdadeiro elogio ao "erro" é o ponto alto da oposição entre a racionalidade e a fé: a tensão entre uma razão universal e a idiossincrasia do temperamento local, em que as relações humanas mostram toda a sua riqueza e intratabilidade. Já à época, a metáfora de Dostoiévski trazia luz ao perigo da manipulação e do espraiamento das palavras na mídia e nas ruas, levando à distorção irrecuperável do juízo humano.
É uma alegoria atual para pensar a gênese de qualquer decisão na esfera pública, em particular nas eleições, que vêm sendo cada vez mais definidas em estratégias de maledicências, construção de vilões e engendramento de factoides, criados e distribuídos por tecnologias sofisticadas.
Em meio às eleições deste ano, já percebemos toda essa movimentação. Memes e cortes virais arregimentaram seguidores e influenciadores e proliferaram ódio, tudo muito bem explorado pela personalização das campanhas de marketing eleitoral com uso de inteligência artificial para traçar perfis, direcionar postagens e monitorar a desinformação nas redes, ou ainda, para forjar conteúdos sensacionalistas imperceptíveis para os eleitores, os deepfakes.
O resultado foi uma campanha escandalosa: não por uma questão ética a ela inerente, mas pelo fato de que o direcionamento de maledicências, explícitas ou dissimuladas pelo humor, foi uma das principais armas de candidatos e partidos na disputa.
Na catequese oficial do Vaticano, escândalo é uma "atitude ou comportamento que induz o outro a fazer o mal". Escandalizar é provocar o vizinho. O pecado é particularmente grave quando explora uma fraqueza ou vulnerabilidade do escandalizado ou uma relação de poder, como aquela entre professor e aluno.
Tal sentido de persuadir alguém ao pecado é totalmente diverso do significado do termo que ganhou o vocabulário moderno: a exposição pública de um ato ou fato vergonhoso, contrário à moralidade. Veja que o escândalo não se identifica com o fato, ou seja, um fato não é em si escandaloso. Como aponta Johannes Ehrat em "Power of Scandal", o escândalo tampouco se localiza na audiência ou na reação social ou psicológica individual ao evento escandaloso. O autor faz, assim, uma distinção interessante entre o escândalo e o ultraje.
O ultraje corresponde ao trauma psicológico ou à indignação, repulsa ou raiva a uma ofensa moral. Já o escândalo, segundo Ehrat, não tem esse efeito na psique humana, típico da comunicação direta entre os interlocutores. O escândalo tem que ser entendido no âmbito da mediatização. Ele surge apenas com a introdução de um mediador que teatraliza o fato a um auditório universal.
Essa construção narrativa depende de três elementos. Primeiro, o relato fidedigno de um fato. Segundo, a construção de um tipo ideal moral, também objetivado, mas valorativo, que é ofendido pelo fato. Terceiro, a reprovação pela "opinião pública", na projeção de um leitor imaginário ou de um auditório universal.
O escândalo sexual de Bill Clinton ilustra esse elemento de idealização do comportamento. O fato (a traição) pode ser encarado como uma questão meramente privada, que traz na psique o ultraje. Porém, a construção do escândalo na mídia tomou outro rumo e a questão central passou a ser Clinton ter faltado com a palavra perante o país, em uma idealização da ideia de dignidade do presidente.
Hoje, o modelo de comunicação em redes sociais elimina o intermediário controlador da produção de conteúdo, de modo que a tecnologia permite a interação direta entre pares. Com isso, se esvazia o escândalo mediado, que ainda guardava traços de racionalidade e tipos ideais, o reduzindo ao ultraje, que não tem pretensão de universalidade, seja quanto ao auditório, seja quanto à moralidade.
É nesse formato de ultraje que vimos se estruturar o confronto entre o ministro Alexandre de Moraes e Elon Musk, ou seja, uma sequencia de insultos voltados para despertar raiva, em torno dos quais vão se aglomerando os correligionários que compartilham daquela repulsa.
Essa comunicação direta gera reação psíquica imediata, manifestada por uma nova linguagem iconográfica, como gifs, e novos tipos de conteúdos, como memes e deepfakes. Nesse ambiente, a confiança se desvincula do discurso e advém diretamente da afetividade ou da identificação com o outro ou com um grupo.
Assim, pareceu perder a importância a justificação jurídica para a decisão do STF sobre a rede X. Perde-se a referência, pois as aglomerações, de ambos os lados, alegam estar em defesa da democracia: alguns em nome das instituições contra um bilionário reacionário, alguns em nome da liberdade de expressão contra um ditador disfarçado em togas.
Desse modo, os debates deixam a praça pública, uma arquitetura intermediada onde prevalece a razão, e vão para as ruelas, nas quais a fronteira entre o público e o privado se dilui nas relações com familiares, amigos, colegas de trabalho, terceiros. Nessa nova arquitetura da mídia, de relações imediatas, a maledicência e a fofoca atacam não a figura pública, mas a personalidade individual e mesmo o caráter dos envolvidos. Além disso, antes de dimensão apenas local, pelas limitações físicas, a fofoca pode ser viralizada em escala potencialmente mundial.
Nesse labirinto de ruelas, comunicações sociais e interpessoais propício ao ultraje, parece ser oportuno o resgate do sentido original da palavra escândalo: pedra que faz alguém tropeçar. Isso porque a personalização, a construção de perfis e o acompanhamento do comportamento dos usuários nas redes, possibilitados por algoritmos, permite a identificação de vulnerabilidades e o direcionamento eficiente de conteúdos persuasivos. Algoritmos identificam, entre aqueles que caminham, os vulneráveis e os predispostos, trazendo oportunidade de acomodar pedras em lugares precisos para a queda.
Para esse sentido de escândalo no ambiente digital, o erro estará constantemente à espreita, em busca de eleitores vulneráveis. Aqui reside o grande risco para o processo democrático. Por ser possibilitado pela tecnologia, seu combate depende do emprego da própria tecnologia, inclusive de inteligência artificial, para monitorar e detectar as pedras de tropeço, esclarecer as maledicências e moderar os ultrajes.
Na sátira de Dostoiévski, vitoriosos são os componentes do júri, que "se mantém firmes" e reafirmam a santidade "mística" da moral provinciana que Dmitri havia violado, ainda que em pensamento. Com isso, o condenam não propriamente pelo crime, que o personagem não cometeu, mas por seu comportamento ultrajante, cujo "mau cheiro" já tinha sido espalhado por cochichos malévolos, fofocas e insultos.
Foi o triunfo do subterrâneo, do irracional, do desprezível, suplantando o belo e o sublime das praças públicas virtuosas. O alerta vale ainda hoje.
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